O conflito árabe-israelense escalou em outubro de 2023.
A violência do dia 7 de outubro de 2023 perpetrada pelo Hamas não se justifica. Mas em nenhuma hipótese, podemos condenar os civis palestinos pelo massacre na rave e no kibutz Re’im. É necessária a contextualização e o conhecimento da história dessa guerra, entrelaçada com o a história da colonização da Palestina, para compreendermos o conflito de um modo mais amplo e informado.
A informação é uma arma importante no combate à julgamentos preconcebidos, a demonização de um povo, apoio a estados totalitários e genocidas e aos discursos de ódio racistas na esfera pública online e offline. O repúdio a violência deve estar acompanhado à reflexão e à empatia entre todas as vítimas, tanto as vítimas do Hamas, quanto as vítimas do Estado de Israel.
O conflito entre Israel e a Palestina é de longa data e envolve uma disputa pelo controle político e religioso de um território pequeno mas sagrado para 3 religiões diferentes: judaísmo, cristianismo e islamismo, território este que fica em um ponto estratégico no Oriente Médio.
Atualmente, as duas religiões dominantes na região, são o judaísmo e o islamismo, as duas organizações políticas nacionalistas que representam ambos os lados são: representantes do movimento nacionalista do estado de Israel (sionismo) e representantes do movimento nacionalista do estado da Palestina (representado pelo Hamas).
Mas de onde veio o Hamas?
Como o radicalismo sionista criou o Hamas?
Grupo fundamentalista islamico Hamas é fruto de 50 anos de ocupação e cumplicidade ocidental. Eleito por uma votação democrática no governo palestino em 2006, apostou numa plataforma de defesa de políticas nacionalistas para fazer oposição ao Fatah, partido de esquerda secular da Palestina. Em meio a um deserto de alternativas, ofereceu saídas à solidão e isolacionismo da Palestina.
O Hamas – حماس – Movimento de Resistência Islâmica – foi fundado durante a primeira Intifada palestina, no fim da década de 1980. O estopim da revolta palestina foi a colisão entre um caminhão militar israelense e dois táxis palestinos no dia 8 de dezembro de 1987. O incidente deixou quatro palestinos mortos. Foi a partir de então que o recém-fundado Hamas passou a liderar uma revolta popular palestina contra o exército de Israel.
À primeira vista, o movimento apresentou uma dupla proposta: uma libertação religiosa e, ao mesmo tempo, nacionalista. Integrantes e apoiadores sentiram que era o momento de salvar a luta nacional palestina e abandonar, de uma vez por todas, as propostas de negociações de paz com Israel. De acordo com Khaled Hroub (2008), a recusa do Hamas em estabelecer acordos com Israel era justificada, tendo em vista que as negociações “estavam condicionadas ao reconhecimento palestino do direito de existência do Estado de Israel” (p.17).
O movimento Hamas tornou-se cada vez mais popular na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Além das estratégias de expansão dos ataques à Israel, as atividades educacionais, sociais e a propagação religiosa atraiam um vasto eleitorado palestino dentro e fora da Palestina, sobretudo nos campos de refugiados. E, por outra parte, o enfraquecimento gradual da legitimidade e da credibilidade da OLP nos territórios ocupados, tornou o movimento do Hamas muito mais forte.
Militarmente, o Hamas passou a adotar táticas controversas de ataques suicidas. Essa escolha influencia, até hoje, os estereótipos do palestino, frequentemente associado à imagem do “homem bomba”, fanático e terrorista. Nos anos 2000 os ataques com “homens-bomba” mataram centenas de israelenses. No período de Intifada, entre os anos de 2000 e 2004, “o Ministério das Relações Exteriores de Israel registrou um total de 425 ataques do Hamas, em ações que deixaram 377 israelenses mortos e 2.076 feridos, entre civis e soldados”. (DW, 2023).
Essa tática foi posta em prática pela primeira vez em 1994, em retaliação à um massacre em uma mesquita situada na cidade de Hebron. Na ocasião, um colono extremista, Baruch Goldstein, residente de um assentamento judaico, abriu fogo contra palestinos, matando 29 pessoas e ferindo muitas outras. Após o massacre, a cúpula do Hamas passou a difundir a ideia de que a sociedade israelense, como um todo, deveria pagar o preço pela ocupação da Palestina, na mesma medida que os palestinos vivem constantemente sob o sofrimento e a ameaça da ocupação militar.
A ascensão do Hamas na cena política palestina é resultado de 50 anos de fracassos pós Acordos de Paz de Oslo, acompanhado por um aumento vertiginoso da ocupação – traduzida em milhares de assentamentos e do ostensivo controle militar na Cisjordânia – pelo bloqueio da Faixa de Gaza, pelo aumento da intensidade da violência militar, da discriminação e de fundamentalismos. A causa palestina deve, acima de tudo, ser defendida como uma luta pela libertação nacional do povo palestino, como um todo, pelo estabelecimento de um Estado palestino, com fronteiras seguras e reconhecidas, ao lado de Israel.
A proposta do estabelecimento de Estado único binacional e/ou de um Estado único federado, conforme defendido, em seus devidos termos, por Hannah Arendt (2016) e Edward Said (2009), tornou-se, com o passar do tempo e com a extensão da gravidade do conflito, permeado por massacres e conflitos, uma hipótese pouco provável. No passado, no contexto da fundação do Estado de Israel, em 1950, Hannah Arendt já alertava sobre a tragédia da insistência nacionalista na soberania absoluta em países tão pequenos.
Décadas de domínio de um povo sobre o outro, décadas de ocupação territorial e militar e de negociações fracassadas fez surgir o fundamentalismo palestino na cena política da Palestina e de Israel. Um fundamentalismo que oprime os palestinos, confinados em Gaza, e que ameaça a existência de Israel.
Conforme analisado, o Hamas não existia em 1947, no contexto da partilha da Palestina. Os grupos militantes árabes e palestinos que lutaram na guerra de 1948, faziam parte do movimento panarabista. Nesta ocasião, a Nakba, traduzida por uma vasta ocupação territorial e pelo exílio de milhares de palestinos, era entendido como uma perda árabe e não tão somente palestina.
O sofrimento permanente do povo palestino, agravado pelo avanço do extremismo na política israelense, pela falência do panarabismo, pela ascensão do fundamentalismo e, principalmente, pela solidão palestina, é considerado o motivo principal para a radicalização do povo palestino, e o apoio ao grupo Hamas.
Qual é a relação dos EUA e de Israel com o Hamas?
Você sabia que o Hamas foi financiado pelo estado israelense em sua origem? A informação é confirmada por ex-membros das forças israelenses e não é teoria da conspiração.
Em 1987, após a primeira intifada, a Irmandade Muçulmana foi financiada por Israel para ser oposição aos nacionalistas de esquerda da Fatah e outros grupos socialistas.
A ideia de Israel era dividir a resistência palestina para colonizar com mais facilidade os palestinos desunidos. Anos depois, o Hamas se tornou a principal força política e militar de resistência contra os israelenses e, ao contrário da Fatah, não aceita o diálogo com os sionistas.
Yitzhak Segev, que foi governador militar israelense em Gaza no início da década de 1980. disse mais tarde a um repórter do New York Times que ajudou a financiar o movimento. “O governo israelita deu-me um orçamento”, confessou o general de brigada reformado.
“O Hamas, para meu grande pesar, é uma criação de Israel”, disse Avner Cohen, um antigo responsável pelos assuntos religiosos israelitas que trabalhou em Gaza durante mais de duas décadas, ao Wall Street Journal em 2009.
Os EUA? Além de, em muitas ocasiões, terem dado apoio à Irmandade Muçulmana – em especial em países árabes de orientação socialista, como o Egito de Nasser e a Síria dos Assad – sabiam da estratégia israelense e a apoiaram.
David Long, que foi especialista em Médio Oriente no Departamento de Estado dos EUA no governo de Ronald Reagan, disse ao jornalista Robert Dreyfuss: “Pensei que os Israelenses estavam brincando com fogo. Mas não sabia que acabariam por criar um monstro. Não acho que você deva mexer com fanáticos em potencial”, afirmou Long.
Eleições não esperadas.
A vitória do Hamas nas eleições do Conselho Legislativo Palestino, em janeiro de 2006, impactou os meios de comunicação internacional e, ao mesmo tempo escandalizou os palestinos seculares, Israel, Estados Unidos, Europa e alguns países árabes.
A popularidade do Hamas causou, e ainda causa, muita frustração na alta cúpula do Fatah, partido de esquerda secular que, até então, conduzia o movimento nacional palestino por mais de 40 anos.
Quando a vitória do Hamas foi confirmada, o The Guardian (2007) registrou o que seria o início de uma guerra civil na Faixa de Gaza. A imagem de um militante do Hamas, mascarado, que deixou-se filmar sentado na mesa que era ocupada pelo presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, declarando o fim de uma Autoridade Palestina apoiada pelo Ocidente na Faixa de Gaza, revoltou parte expressiva da sociedade palestina e ocidental. No vídeo, um dos militantes, em um ato de escárnio, finge fazer uma ligação telefônica para a então secretária dos Estados Unidos, Condolezza Rice, dizendo: “Você terá que tratar conosco agora, não há mais Abu Mazen!”.
Mais adiante, algumas lideranças do Hamas declaram a possibilidade de anistiar alguns presos políticos do Fatah detidos, entre eles Musbah al-Bhaisi, o chefe da guarda pessoal de Mahmoud Abbas, Jamal Kayed, chefe das forças de segurança e Majid Abu Shammala, alto funcionário político do Fatah na Faixa de Gaza.
Imediatamente, a União Europeia e os Estados Unidos passaram a boicotar o novo governo na Faixa de Gaza, pois o consideravam uma organização terrorista, já que se recusavam a reconhecer o Estado de Israel e a renunciar a violência. Israel passou a impor bloqueios econômicos ao território, levando a população da Faixa de Gaza a uma profunda miséria, sem conseguir enfraquecer o Hamas. Em um primeiro momento, houve uma crise intensa de abastecimento, contudo o grupo islâmico, logo, encontrou uma saída subterrânea. A construção de uma vasta rede de túneis possibilitou importar e transportar praticamente tudo, desde alimentos, automóveis até animais selvagens para um zoológico local.
Os túneis do Hamas também passaram a servir para fins militares, suprimento de armamentos e para infiltrações nas cidades israelenses.
Naquele momento, passados 14 anos dos Acordos de Paz de Oslo, os governos dos territórios palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza tornaram-se fortemente polarizados. O acirramento dos confrontos entre os dois partidos políticos, o Fatah e o Hamas, resultaram na morte de cerca de 100 palestinos.
Apesar das trágicas consequências da vitória do Hamas para a população palestina, a popularidade do Hamas não aconteceu de modo repentino. É resultado de uma incansável militância junto a população palestina residente nos territórios ocupados e nos campos de refugiados, aliado à uma longa lista de fracassos do movimento nacional palestino frente a contínua e brutal ocupação israelense.
No fim dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, a então Organização pela Libertação da Palestina (OLP), fez algumas concessões históricas marcantes, renunciou ao objetivo de “libertação da Palestina”, ao reconhecer formalmente o Estado de Israel e abandonou a luta armada em benefício às negociações para o estabelecimento de um Estado palestino nos territórios da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, que compreende os territórios palestinos de antes da guerra de 1967.
O Hamas, por outra parte, se opôs radicalmente aos Acordos de Paz de Oslo (1993), ao considerar que as diretrizes do acordo comprometiam os direitos básicos do povo palestino. De acordo com a visão das lideranças do Hamas, a Palestina compreende todo o território “do rio Jordão ao mar Mediterrâneo” e não apenas a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Além disso, o compromisso palestino de prevenir a violência, “baixar as armas”, nos quadros do famoso lema “terra por paz”, era interpretado, pelo Hamas, como uma rendição palestina.
Apesar da oposição do Hamas, os Acordos de Oslo, à princípio, foram amplamente apoiados pelo povo palestino. Na ocasião, algumas estimativas apontavam que dois terços do povo palestino se sentiam otimistas pelos prognósticos dos acordos estabelecidos entre o presidente da Autoridade palestina, Yasser Arafat e o primeiro-ministro de Israel, Yitzhak Rabin.
Contudo, embora o acordo prever a retirada total das forças de defesa de Israel da Faixa de Gaza e da Cisjordânia, de modo a prevalecer a autodeterminação da Autoridade Palestina sob esses territórios, após 10 anos houve, de fato, uma intensificação da ocupação territorial. A construção de assentamentos na Cisjordânia aumentou vertiginosamente. Quando o Acordo de Oslo foi assinado, em 1993, já existia cerca de 110 mil colonos israelenses vivendo nos territórios compreendidos pela Cisjordânia e Jerusalém Oriental. Em 2003, o número de colonos nos territórios palestinos já era superior a 700 mil.
O assassinato do primeiro-ministro Yitzhak Rabin, signatário dos acordos, por um judeu-israelense extremista, seguido pelo fracasso real dos Acordos de Paz de Oslo e, mais adiante, pelo colapso das negociações de paz em Camp David, em 2000, causou muita frustração, revolta e indignação. A fúria palestina, contudo, foi intensificada quando o líder da oposição israelense, Ariel Sharon, de modo provocativo, visitou o complexo da mesquita de Al-Aqsa, conhecido pelos judeus como Monte do Templo. A partir de então irrompeu-se a segunda Intifada palestina, conhecida como a Intifada Al-Aqsa.
Nesse ínterim o projeto de resistência do Hamas angariou mais poder e influência entre a população palestina. A violência mortal em Israel e nos territórios palestinos abalou os planos de um processo de paz e, consequentemente, fortaleceu a extrema direita de Israel, agora, em 2023, representada por Benjamin Netanyahu.
Quem está certo na história?
Ora, nós como libertários devemos defender que nenhum dos dois lados que utilizam a força para impor o seu projeto político e militar nacionalista, estão certos.
Os colonos religiosos israelenses – muitas vezes nascidos fora dali, em países como os Estados Unidos – estão casa a casa, centímetro a centímetro, tentando estrangular e desenraizar as propriedades privadas da sociedade palestina para tomar a cidade santa. É seu “direito divino”, argumentam. O direito internacional e as organizações de direitos humanos como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch e a B’Tselem utilizam um vocabulário diferente: ocupação ilegal, Apartheid, genocídio e crimes contra a humanidade, entre outros.
A realidade segregada e militarizada da cidade da Cisjordania é chocante para qualquer observador externo, mas as condições são muito melhores do que as dos palestinos que vivem em Gaza, que é considerada pelas organizações de direitos humanos a maior e mais superlotada prisão ao ar livre do planeta, com 2 milhões de habitantes.
As negociações de paz continuam intermitentes, mas a questão central permanece em grande parte não resolvida: a busca por uma solução duradoura que inclua uma solução de território palestino independente ao lado de Israel.
O conflito árabe-israelense é um dos mais duradouros e complicados do mundo, com profundas implicações regionais e internacionais. Resta-nos torcer pela paz e pela vida dos civis que estão sendo massacrados em ambos os lados, por esses movimentos nacionalistas.
O problema como sempre, é a institucionalização da violência.