O coletivismo depende de líderes messiânicos

Ludwig Von Mises

Ludwig Von Mises

Os sacerdotes dessa religião atribuem a seu ídolo as mesmas virtudes que os teólogos atribuem a Deus

Segundo as doutrinas do universalismo, do realismo conceitual, do holismo e do coletivismo, a sociedade é uma entidade que vive sua própria vida, independente e separada das vidas dos diversos indivíduos, agindo por sua própria conta e visando a seus próprios fins, que são diferentes dos pretendidos pelos indivíduos.

Assim sendo, é evidente que pode surgir um antagonismo entre os objetivos da sociedade e os objetivos individuais.

Logo, para salvaguardar o florescimento e futuro desenvolvimento da sociedade, torna-se necessário controlar o egoísmo dos indivíduos e obrigá-los a sacrificar seus desígnios egoístas em benefício da sociedade.

Chegando a esta conclusão, todas as doutrinas coletivistas têm forçosamente de abandonar os métodos tradicionais da ciência humana e do raciocínio lógico e adotar uma profissão de fé teológica ou metafísica. Ato contínuo, e recorrendo a líderes carismáticos, os adeptos desta doutrina têm de obrigar os homens — que são perversos por natureza, isto é, dispostos a perseguir seus próprios fins — a entrar no caminho certo que a história quer que eles trilhem.

Esta filosofia é a mesma que, desde tempos imemoriais, caracteriza as crenças de tribos primitivas. Tem sido um elemento de todos os ensinamentos religiosos. O indivíduo torna-se obrigado a respeitar os decretos promulgados por um poder super-humano e obedecer às autoridades, encarregadas por este poder de fazer cumprir a lei.

Sob as doutrinas do universalismo e do coletivismo, o indivíduo, ao agir de acordo com o código ético, não o faz em benefício direto de seus interesses particulares, mas, ao contrário, renuncia aos seus próprios objetivos em benefício dos desígnios da comunidade.  

Na visão do coletivismo, é inútil tentar convencer a maioria pela persuasão e conduzi-la, amigavelmente, ao caminho certo. Os que receberam a “iluminação” — sempre guiados pelo carisma de seu líder — têm o dever de pregar o evangelho aos dóceis e de recorrer à violência contra os intratáveis. O líder carismático é praticamente um vigário da Divindade, o representante dos genuínos interesses da sociedade, um instrumento da história. É infalível e tem sempre razão. Suas ordens são a norma suprema.

Por isso, o coletivismo é necessariamente um sistema de governo teocrático. A característica comum de todas as suas variantes é a postulação de uma entidade com características sobre-humanas à qual os indivíduos devem obediência. O que as diferencia uma das outras é apenas a denominação que dão a esta entidade e o conteúdo das leis que proclamam em seu nome. O poder ditatorial de uma minoria não encontra outra forma de legitimação a não ser apelando para um suposto mandato recebido de uma autoridade suprema e sobre-humana.

Pouco importa se o autocrata baseia sua autoridade no direito sagrado dos reis ou na missão histórica da vanguarda do proletariado; nem se o ser supremo se denomina Geist (Hegel) ou Humanité (Auguste Comte). Os termos “sociedade” e “estado”, como empregados pelos adeptos contemporâneos do socialismo, do coletivismo, do planejamento e do controle social das atividades dos indivíduos, têm o significado de uma divindade.

Os sacerdotes dessa nova religião atribuem a seu ídolo todas aquelas virtudes que os teólogos atribuem a Deus: onipotência, onisciência, bondade infinita etc.

Se admitirmos que exista, acima e além das ações individuais, uma entidade imperecível que visa a seus próprios fins, diferentes dos homens mortais, teremos já estruturado o conceito de um ser sobre-humano. Não podemos, então, fugir da questão sobre quais fins têm precedência, sempre que houver um conflito: se os do estado ou sociedade, ou os do indivíduo.

O indivíduo e o coletivo

A resposta a esta questão já está implícita no próprio conceito de estado ou sociedade como entendido pelo coletivismo e pelo universalismo. Ao se postular a existência de uma entidade que, por definição, é mais elevada, mais nobre e melhor do que os indivíduos, não pode haver qualquer dúvida de que os objetivos desse ser eminente devem prevalecer sobre os dos míseros mortais.

Se o estado é uma entidade dotada de boa vontade, boas intenções e de todas as outras qualidades que lhe são atribuídas pela doutrina coletivista, então, pela lógica, é simplesmente absurdo confrontar as aspirações triviais do pobre indivíduo com os majestosos desígnios do estado.

O caráter quase teológico de todas as doutrinas coletivistas torna-se evidente nos seus conflitos mútuos. Uma doutrina coletivista não proclama a superioridade do ente coletivo in abstrato; proclama sempre a proeminência de um determinado ídolo coletivista e, então, ou nega liminarmente a existência de outros ídolos do mesmo gênero, ou os relega a uma posição subordinada e auxiliar em relação ao seu próprio ídolo.

Os adoradores do estado proclamam a excelência de seu próprio governo. Se dissidentes contestam o seu programa — quase sempre anunciando a superioridade de algum outro ídolo coletivista —, a única resposta é repetir muitas vezes: nós estamos certos porque uma voz interior nos diz que nós estamos certos e vocês estão errados. Os conflitos entre coletivistas de seitas ou credos antagônicos não podem ser resolvidos pela discussão racional; só podem ser resolvidos pelo recurso à força das armas.

Todas as variantes de credos coletivistas estão unidas em sua implacável hostilidade às instituições políticas fundamentais do sistema liberal: tolerância para com as opiniões divergentes, liberdade de pensamento, de expressão e de imprensa, igualdade de todos perante a lei. Essa união dos credos coletivistas nas suas tentativas de destruir a liberdade deu origem à suposição equivocada de que a controvérsia política atual seja entre individualismo e coletivismo. Na verdade, é uma luta entre o individualismo de um lado e uma variedade de seitas coletivistas do outro. E o ódio e hostilidade mútuos entre essas seitas são ainda mais ferozes que sua aversão ao sistema liberal.

modus operandi e as consequências

A aplicação das ideias coletivistas só pode resultar na desintegração social e na luta armada permanente. É claro que todas as variedades de coletivismo prometem a paz eterna a partir do dia de sua vitória final e da derrota completa de todas as outras ideologias e seus defensores. Entretanto, para que estes planos sejam realizados, é necessária uma mudança radical no gênero humano. Os homens devem ser divididos em duas classes: de um lado, o político onipotente, messiânico, quase divino; do outro, as massas, que devem abdicar da vontade e do raciocínio próprio para se tornarem meros peões no tabuleiro deste pretenso ditador.

As massas devem ser desumanizadas para que se possa fazer de um homem o seu senhor divinizado. Pensar e agir, as características primordiais do indivíduo, tornar-se-iam o privilégio de um só homem. Não é necessário mostrar que tais desígnios são irrealizáveis. Os impérios milenaristas dos ditadores são fadados ao fracasso; nunca duram mais do que alguns anos. Já assistimos à queda de muitas destas ordens “milenares”. As remanescentes não terão melhor sorte.

O atual ressurgimento das ideias coletivistas, causa principal das agonias e desastres de nosso tempo, tem sido tão bem-sucedido, que fez esquecer as ideias essenciais da filosofia social liberal. Para os adeptos do coletivismo, em qualquer uma de suas várias roupagens, as maiorias têm sempre razão simplesmente porque têm o poder de derrotar qualquer oposição; governo majoritário equivale à ditadura do partido mais numeroso, e a maioria no poder não sente necessidade de se refrear na utilização do seu poder nem na condução dos negócios públicos.

Logo que uma facção consegue obter o apoio da maioria dos cidadãos — e, desse modo, assume o controle da máquina governamental —, considera-se com a faculdade de negar à minoria todos aqueles direitos democráticos por meio dos quais conseguiu alcançar o poder.

Já os liberais não divinizam as maiorias nem as consideram infalíveis; não sustentam que o simples fato de uma política ser apoiada por muitos seja prova de seus méritos para o bem-comum. Não recomendam a ditadura da maioria nem a opressão violenta das minorias dissidentes. O liberalismo visa a estabelecer um arranjo político que assegure o funcionamento pacífico da cooperação social e a intensificação progressiva das relações sociais mútuas. Seu objetivo principal é evitar conflitos violentos, guerras e revoluções que necessariamente desintegram a colaboração social e fazem os homens retornarem ao barbarismo primitivo, quando todas as tribos e grupos políticos viviam permanentemente em luta uns com os outros.

O liberalismo é simplesmente uma defesa do individualismo, que, quando respeitado, geram a divisão do trabalho, a cooperação social e a intensificação progressiva dos vínculos sociais.

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O artigo acima contém excertos do livro Ação Humana, de 1948.

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