Liberalismo Clássico versus Anarco-Capitalismo

Nesta primeira década do século XXI, o pensamento liberal, quer no seu aspecto teórico, quer no seu aspecto político, encontra-se numa encruzilhada histórica. Apesar de a queda do Muro de Berlim e do socialismo soviético em 1989 ter aparentado anunciar o «fim da história» (usando a infeliz e excessiva frase de Francis Fukuyama), hoje em dia, e em muitos aspectos mais do que nunca, o estatismo prevalece em todo o mundo, acompanhado pela desmoralização dos amantes da liberdade.

É por isso imperativo um aggiornamento do liberalismo. É tempo de rever cuidadosamente a doutrina liberal e de a actualizar à luz dos recentes avanços da ciência económica, bem como da experiência que os últimos acontecimentos históricos nos deram.

Esta revisão deve começar com um reconhecimento de que os liberais clássicos falharam na sua tentativa de limitar o poder do estado e de que hoje a ciência económica está em posição de explicar porque é que este falhanço era inevitável. O próximo passo é focar-se na teoria dinâmica dos processos de cooperação social guiados pelos empreendedores que dão origem à ordem espontânea do mercado. Esta teoria pode ser expandida e transformada numa análise completa do sistema de cooperação social anarco-capitalista, que se revela como o único sistema que é verdadeiramente viável e compatível com a natureza humana.

Neste artigo, analisaremos estas questões em pormenor, juntamente com uma série de considerações práticas adicionais sobre estratégia científica e política. Além disso, faremos uso desta análise para corrigir certos mal-entendidos comuns e erros de interpretação.

O erro fatal do liberalismo clássico

O erro fatal dos liberais clássicos reside na sua incapacidade de perceberem que o seu ideal é teoricamente impossível, pois contém a semente da sua própria destruição, precisamente na medida em que inclui a necessária existência de um estado (mesmo que mínimo), entendido como o único agente de coerção institucional.

Portanto, os liberais clássicos cometem o seu grande erro na sua abordagem: vêem o liberalismo como um plano de acção política e um conjunto de princípios económicos, cujo objectivo é limitar o poder do estado embora aceitando a sua existência e mesmo considerando-a necessária. Contudo, hoje (na primeira década do século XXI), a ciência económica já mostrou:

  1. que o estado é desnecessário;
  2. que o estatismo (mesmo que mínimo) é teoricamente impossível; e
  3. que, dada a natureza humana, assim que o estado exista, é impossível limitar o seu poder.

Comentaremos cada um destes assuntos em separado.

O estado como ente desnecessário

Duma perspectiva científica, apenas o erróneo paradigma do equilíbrio poderia encorajar a crença numa categoria de «bens públicos», na qual a satisfação dos critérios de oferta conjunta e de não rivalidade no consumo justificaria, prima facie, a existência de uma agência com um monopólio sobre a coerção institucional (o estado) que obrigaria todos a financiar esses bens.

No entanto, a concepção dinâmica Austríaca da ordem espontânea conduzida pelo empreendedorismo demoliu por completo esta teoria avançada para justificar o estado: o surgimento de algum caso (real ou aparente) de um «bem público», i.e., com oferta conjunta e não rivalidade no consumo, é acompanhada pelos incentivos necessários para que o ímpeto da criatividade empresarial encontre uma melhor solução através de inovações tecnológicas e jurídicas, e de descobertas empresariais que tornem possível ultrapassar qualquer problema que possa surgir (desde que o recurso não seja declarado «público» e o livre exercício do empreendedorismo seja permitido, em conjunto com a correspondente apropriação privada dos frutos de cada acto criativo empresarial).

Por exemplo, no Reino Unido, o sistema de faróis foi detido e financiado privadamente durante muitos anos, e procedimentos privados (associações de marinheiros, taxas portuárias, monitorização social espontânea, etc.) ofereceram uma solução eficaz para o «problema» que os livros de economia «estatista» apresentam como o mais típico exemplo de um «bem público». Do mesmo modo, no Faroeste Americano, surgiu o problema de definir e defender direitos de propriedade que diziam respeito, por exemplo, a cabeças de gado em vastas extensões de terreno. Várias inovações empresariais que resolveram os problemas à medida que surgiam foram gradualmente introduzidas (marcação de gado, supervisão constante por vaqueiros armados e a cavalo, e, finalmente, a descoberta e introdução de arame farpado, que, pela primeira vez, permitiu a efectiva separação de grandes extensões de terreno a um preço muito acessível).

Este fluxo criativo de inovação empresarial teria sido completamente bloqueado se os recursos tivessem sido declarados «públicos», excluídos da posse privada, e geridos burocraticamente por uma agência estatal. (Hoje em dia, por exemplo, a maior partes das ruas e estradas estão fechadas à adopção de inúmeras inovações empresariais – a cobrança de uma portagem por veículo e hora, a gestão privada da segurança e da poluição sonora, etc. – apesar do facto de a maioria das inovações como estas já não colocarem qualquer problema tecnológico. No entanto, os bens em questão foram declarados «públicos», o que impede a sua privatização e a sua gestão criativa e empresarial ).

Para além disto, a maior parte das pessoas acredita que o estado é necessário porque confundem a sua existência (desnecessária) com a natureza essencial de muitos dos serviços e recursos que ele actualmente (e insatisfatoriamente) providencia, e sobre a provisão dos quais exerce um monopólio (quase sempre sob o pretexto da sua natureza pública). As pessoas observam que, hoje, auto-estradas, hospitais, escolas, ordem pública, etc., são providenciados em grande medida pelo estado, e, uma vez que são extremamente necessários, concluem sem mais análise que o estado também o é.

Não conseguem perceber que os recursos mencionados acima podem ser produzidos com um padrão de qualidade muito mais alto, com maior maior eficiência e economia, bem como em sintonia com as variadas e mutáveis necessidades de cada indivíduo, através da ordem espontânea do mercado, da criatividade empresarial, e da propriedade privada. Além disso, as pessoas cometem o erro de acreditar que o estado é também necessário para proteger os indefesos, os pobres e os indigentes («pequenos» accionistas, consumidores comuns, trabalhadores, etc.), no entanto não percebem que medidas supostamente protectoras têm o resultado sistemático, como a teoria económica demonstra, de prejudicar em cada caso precisamente aqueles que se alega protegerem, e assim uma das mais desajeitadas e bolorentas justificações para a existência do estado desaparece.

Rothbard sustentava que o conjunto de bens e serviços que o estado actualmente fornece pode ser dividido em dois subconjuntos: os bens e serviços que deveriam ser eliminados e os que deveriam ser privatizados. É claro que os bens mencionados no parágrafo acima pertencem ao segundo grupo e que o desaparecimento do estado, longe de significar o fim auto-estradas, hospitais, escolas, ordem pública, etc., significaria a sua provisão em maior abundância, com padrões mais elevados e a um preço mais razoável (sempre com respeito ao custo real que os cidadãos actualmente pagam através dos impostos).

Devemos apontar adicionalmente que os episódios históricos de caos institucional e desordem pública que poderíamos referir (por exemplo, muitas situações nos anos anteriores e durante a Guerra Civil Espanhola e a Segunda República, ou ainda hoje em vastas áreas da Colômbia ou do Iraque) resultam de um vácuo na provisão destes bens, uma situação criada pelos próprios estados, que nem fazemcom um mínimo de eficiência aquilo que em teoria deveriam fazer, segundo os seus próprios apoiantes, nem deixam o sector privado empresarial fazê-lo, dado que o estado prefere a desordem (que aparenta legitimar ainda mais a sua presença coerciva) ao seu próprio desmantelamento e privatização a todos os níveis.

É particularmente importante perceber que a definição, aquisição, transmissão, troca e defesa dos direitos de propriedade que coordenam e guiam o processo social não requerem uma agência com um monopólio sobre violência (o estado). Pelo contrário, o estado invariavelmente actua atropelando numerosos títulos de propriedade legítimos, defendendo-os muito mal e corrompendo o comportamento (moral e legal) dos indivíduos no que diz respeito aos direitos de propriedade privada de outrem.

O sistema jurídico é a manifestação evolutiva dos princípios gerais do direito (em especial no que toca à propriedade) compatíveis com a natureza humana. Por isso, o estado não determina a lei (democraticamente ou de outro modo). Pelo contrário, a lei está contida na natureza humana, mesmo sendo descoberta e consolidada de forma evolutiva, em termos de precedentes e, principalmente, doutrina. (Vemos a tradição Romana e continental, com a sua natureza mais abstracta e doutrinal, como muito superior ao sistema anglo-saxónico de common law, que tem origem num apoio desproporcionado do estado a decisões judiciais ou julgamentos. Estes julgamentos, através de jurisprudência vinculativa, introduzem no sistema jurídico todo o tipo de disfunções que nascem das circunstâncias e interesses específicos e prevalecentes em cada caso.) A lei é evolutiva e assenta no costume, e, por isso, precede e é independente do estado, e não requer, para a sua definição e descoberta, de uma agência com um monopólio sobre a coerção.

O estado não é apenas desnecessário para definir a lei: é também desnecessário para a aplicar e defender. Este ponto devia ser particularmente óbvio nos dias que correm, quando a utilização – mesmo, paradoxalmente, por muitas agências governamentais – de empresas de segurança privada se tornou bastante comum.

Este não é o local para apresentar uma descrição pormenorizada de como funcionaria a provisão privada dos que hoje são considerados «bens públicos» (embora a falta de conhecimento a prioriacerca da forma como o mercado resolveria inúmeros problemas específicos seja a objecção ingénua e superficial dos que favorecem o status quo actual sob o pretexto de que «é melhor o diabo que se conhece que o diabo que não se conhece»). De facto, não podemos hoje saber que soluções encontraria um exército de indivíduos empreendedores para problemas específicos – se isso lhes fosse permitido. Contudo, mesmo a mais céptica das pessoas tem que admitir que «sabemos agora» que o mercado, guiado pela criatividade empresarial, funciona, e funciona precisamente na medida em que o estado não intervém coercivamente neste processo social.

É também essencial reconhecer que surgem invariavelmente dificuldades e conflitos precisamente em áreas onde a ordem livre e espontânea do mercado é dificultada. Assim, independentemente dos esforços feitos, desde os tempos de Gustave de Molinari até ao presente, para imaginar como funcionaria uma rede anarco-capitalista de agências privadas de segurança e defesa, cada uma suportando sistemas jurídicos mais ou menos marginalmente alternativos, os teóricos da liberdade não podem nunca esquecer que o que nos impede de conhecer o aspecto de um futuro sem estado – a natureza criadora do empreendedorismo – é precisamente o que nos dá o descanso de saber que qualquer problema tenderá a ser ultrapassado, pois as pessoas envolvidas dedicarão todo o seu esforço e criatividade na sua resolução[1].

A ciência económica ensinou-nos não só que os mercados funcionam, mas também que o estatismo é teoricamente impossível.

Por que razão o estatismo é teoricamente impossível

A teoria económica Austríaca sobre a impossibilidade do socialismo pode ser expandida[2] e transformada numa teoria completa da impossibilidade do estatismo, entendido como a tentativa de organizar qualquer esfera da vida em sociedade através de ordens coercivas envolvendo intervenção, regulação, e controlo emanadas da instituição com o monopólio da agressão institucional (o estado). Não é possível ao estado atingir os seus objectivos de coordenação em nenhuma parte do processo de cooperação social em que tente intervir, especialmente nas esferas da moeda e da banca[3], da descoberta do direito, da distribuição de justiça e da ordem pública (entendida como a prevenção, repressão e sanção de actos criminosos), pelas quatro razões que se seguem:

  1. O estado necessitaria de um enorme volume de informação e essa informação encontra-se apenas de forma dispersa e difusa nas mentes dos milhões de pessoas que participam todos os dias no processo social.
  2. A informação de que o orgão interveniente precisaria para que as suas ordens tivessem um efeito coordenador é predominantemente tácita e de natureza inarticulável, não podendo por isso ser transmitida com absoluta clareza.
  3. A informação que a sociedade usa não é «dada»; muda constantemente como resultado da criatividade humana. Logo, não há obviamente qualquer possibilidade de transmitir hoje informação que só amanhã será criada, e que é precisamente a informação que o agente da intervenção estatal necessita para atingir amanhã os seus objectivos .
  4. Finalmente, e acima de tudo, na medida em que as ordens do estado sejam obedecidas e exerçam o efeito desejado na sociedade, a sua natureza coerciva bloqueia a criação empreendedora justamente da informação de que o organismo interventor estatal mais desesperadamente necessita para dar um conteúdo coordenador (e não desajustador) às suas ordens.

O estatismo é não só teoricamente impossível, como também produz uma série de efeitos distorcedores periféricos e muito prejudiciais: o encorajamento da irresponsabilidade (não sabendo as autoridades o verdadeiro custo da sua intervenção, agem irresponsavelmente); a destruição do ambiente quando ele é declarado como bem público e a sua privatização é impedida; a corrupção dos conceitos tradicionais de lei e justiça, que são substituídos por ordens e justiça «social»[4]; e a corrupção imitativa do comportamento dos indivíduos, que se tornam cada vez mais agressivos e cada vez menos respeitadores da moralidade e da lei.

A análise acima também nos permite concluir que, se certas sociedades hoje prosperam, fazem-no não devido ao estado, mas apesar dele[5]. Pois muitas pessoas estão ainda acostumadas a padrões de comportamento que estão sujeitos a leis substantivas; áreas de maior liberdade relativa persistem; e o estado tende a ser bastante ineficiente a impor as suas ordens, invariavelmente desajeitadas e cegas. De mais a mais, mesmo o mais marginal acréscimo de liberdade proporciona grandes incrementos de prosperidade, o que ilustra até quão longe a civilização poderia avançar sem os entraves do estatismo.

Finalmente, já falamos da falsa crença mantida por todos aqueles que identificam o estado com a provisão dos bens («públicos») que agora provê (pobremente e a grande custo) e que erroneamente concluem que o desaparecimento do estado resultaria necessariamente no desaparecimento desses valiosos serviços. Tiram esta conclusão num contexto de constante doutrinação política a todos os níveis (especialmente no sistema educativo, do qual nenhum estado deseja perder o controlo, por razões óbvias), um contexto em que normas de «correcção política» são ditatorialmente impostas, e em que o status quo é racionalizado por uma maioria complacente, que se recusa a ver o óbvio: que o estado não passa de uma ilusão criada por uma minoria para viver à custa dos outros, que são primeiro explorados, depois corrompidos e depois pagos com recursos externos (impostos) por todos os tipos de «favores» políticos.

A impossibilidade de limitar o poder do estado: O seu carácter «letal» em combinação com a natureza humana

Assim que o estado exista, é impossível limitar a expansão do seu poder. Mesmo reconhecendo, como Hoppe indica, que certas formas de governo (como monarquias absolutas, em que o rei-proprietário será, ceteris paribus, mais cuidadoso no longo prazo para evitar «matar a galinha dos ovos de ouro») tenderão a expandir o seu poder e a intervir um pouco menos que outras (tal como as democracias, nas quais não existem incentivos reais para os governantes se preocuparem com o que ocorrerá depois das próximas eleições). É igualmente verdade que, em certas circunstâncias histórias, a vaga intervencionista parece até certo ponto ter sido contida.

Não obstante, a análise histórica é irrefutável: o estado não parou de crescer[6]. E assim foi porque a mistura da natureza humana e do estado, como instituição com um monopólio da violência, é «explosiva». O estado age como um íman irresistivelmente poderoso que atrai e impulsiona as mais vis paixões, vícios e facetas da natureza humana. As pessoas tentam contornar as ordens estatais e simultaneamente obter tantas vantagens quanto possível do seu poder monopolista.

De mais a mais, e em particular em contextos democráticos, a combinação entre a acção de grupos de interesse privilegiados, os fenómenos da miopia governamental e da compra de votos, a natureza megalomaníaca dos políticos, e a irresponsabilidade e cegueira das burocracias resulta num coquetel perigosamente instável e explosivo. Esta mistura é continuamente agitada por crises sociais, económicas e políticas que, paradoxalmente, os políticos e «líderes» sociais nunca deixam de usar como justificações para doses subsequentes de intervenção que se limitam a criar novos problemas e a exacerbar ainda mais os já existentes.

O estado tornou-se o «ídolo» ao qual todos se dirigem e veneram. A estadolatria é, sem qualquer dúvida, a doença social mais séria e perigosa do nosso tempo. Ensinam-nos a acreditar que todos os problemas podem e devem ser detectados atempadamente e resolvidos pelo estado. O nosso destino está nas mãos do estado, e os políticos que o governam têm de garantir-nos tudo o que é requerido para o nosso bem-estar. Os seres humanos permanecem imaturos e rebelam-se contra a sua própria natureza criativa (uma qualidade essencial que torna o seu futuro inevitavelmente incerto).

Exigem uma bola de cristal para garantir não apenas que saibam o que acontecerá no futuro, mas também que quaisquer problemas que surjam sejam resolvidos. Esta «infantilização» das massas é deliberadamente promovida por políticos e líderes sociais, pois dessa forma justificam publicamente a sua existência e garantem a sua popularidade, predominância e capacidade governativa. Para além disso, uma legião de intelectuais, professores e engenheiros sociais juntam-se-lhes nesse frenesim arrogante de poder.

Nem mesmo as mais respeitáveis igrejas e denominações religiosas chegaram a um diagnóstico acertado do problema: que a estadolatria actual é a principal ameaça a seres humanos livres, morais e responsáveis; que o estado é um falso ídolo imensamente poderoso, adorado por todos e que não admite que ninguém se liberte do seu controlo ou tenha lealdades morais ou religiosas fora da sua esfera de domínio.

De facto, o estado conseguiu atingir algo que poderia a priori parecer impossível: conseguiu astuta e sistematicamente distrair os cidadãos do facto de que a verdadeira origem dos conflitos e males sociais está no próprio governo, criando para isso bodes expiatórios por toda a parte (o «capitalismo», o desejo de lucro, a propriedade privada). O estado atribui então a estes bodes expiatórios a culpa pelos problemas e torna-os alvo da ira popular e da mais severa e enfática condenação pelos líderes morais e religiosos, quase nenhum dos quais se deu conta desta fraude ou ousou até agora denunciar de que forma, neste século, a idolatria do estado representa a principal ameaça à religião, à moralidade e, por isso, à civilização humana[7].

Assim como a queda do muro de Berlim em 1989 foi a melhor ilustração histórica do teorema da impossibilidade do socialismo, o enorme falhanço dos teóricos e políticos do liberalismo clássico na limitação do poder do estado ilustra perfeitamente o teorema da impossibilidade do estatismo, especificamente o facto de que o estado liberal é contraditório em si mesmo (pois é coercivo, mesmo sendo «limitado») e teoricamente impossível (dado que assim que se aceita a sua existência, torna-se impossível limitar o seu poder). Sintetizando, o «estado de direito» é um ideal inatingível e uma contradição nos termos tão flagrante quanto o são as contradições «neve quente, virgem devassa, esqueleto gordo, quadrado redondo»[8] ou as contradições evidentes nas ideias dos «engenheiros sociais» e economistas neoclássicos quando se referem a um «mercado puro» ou ao chamado «modelo de concorrência perfeita»[9].

O anarco-capitalismo como único modelo de cooperação possível verdadeiramente compatível com a natureza humana

O estatismo contraria a natureza humana, dado que consiste no exercício sistemático e monopolístico de uma coerção que, em todas as áreas onde a sua acção é sentida (incluindo as que correspondem à definição da lei e à manutenção da ordem pública), bloqueia a criatividade e a coordenação empresarial, que são precisamente as mais típicas e essenciais manifestações da natureza humana. Acresce ainda que, como já vimos, o estatismo estimula e impulsiona a irresponsabilidade e a corrupção moral, pois desvia o foco do comportamento humano para a manipulação privilegiada das rédeas do poder político, dentro de um contexto de inerradicável ignorância que torna impossível saber os custos de cada acção governamental. Os efeitos do estatismo acima descritos surgem onde que que um estado exista, mesmo que se façam todas as tentativas para limitar o seu poder, um objectivo inalcançável que torna o liberalismo clássico uma utopia cientificamente irrealizável.

É absolutamente necessário ultrapassar o «liberalismo utópico» dos nossos predecessores, os liberais clássicos, que foram simultaneamente ingénuos, por pensarem que o estado podia ser limitado, e incoerentes, por não levarem as suas ideias até às suas conclusões lógicas, aceitando as suas implicações. Daí que, hoje, com o século XXI em bom curso, a nossa maior prioridade deva ser permitir que o liberalismo clássico (utópico e ingénuo) do século XIX seja substituído pela sua nova formulação, verdadeiramente científica e moderna, a que poderíamos chamar capitalismo libertário, anarquismo de propriedade privada ou simplesmente anarco-capitalismo. Afinal, não tendo os estados parado de crescer e de usurpar as liberdades individuais das pessoas em todas as áreas, apesar da queda do muro de Berlim há 20 anos, não faz sentido que já bem dentro do século XXI os liberais continuem a dizer o mesmo que diziam há 150 anos.

O anarco-capitalismo (ou «libertarianismo») é a mais pura representação da ordem espontânea do mercado, na qual todos os serviços, incluindo a definição da lei, a justiça e a ordem pública, são providos através de um processo exclusivamente voluntário de cooperação social, que se torna assim no foco da investigação da ciência económica moderna. Neste sistema, nenhuma área está fechada ao ímpeto da criatividade humana e da coordenação empresarial, e por isso aumentam a eficiência e a equidade na solução dos problemas, e são erradicados todos os conflitos, ineficiências e desajustes invariavelmente causados pela simples existência de agências com um monopólio da violência (estados).

Para além disso, o sistema proposto elimina os incentivos corruptores criados pelo estado, promovendo pelo contrário os comportamentos humanos mais morais e responsáveis, e impedindo o surgimento de qualquer agência monopolística (o estado) que legitime a utilização sistemática da violência e a exploração de certos grupos sociais (os que não podem senão obedecer) por outros grupos sociais (os que de momento têm maior controlo sobre as rédeas do poder estatal).

O anarco-capitalismo é o único sistema que reconhece plenamente a natureza livre e criativa dos seres humanos e a sua perpétua capacidade de internalizar padrões de comportamento cada vez mais morais num ambiente em que, por definição, ninguém pode arrogar-se o direito de exercer coerção monopolística e sistemática. Em suma, num sistema anarco-capitalista qualquer projecto empresarial pode ser tentado desde que atraia o necessário apoio voluntário e, por isso, muitas possíveis soluções criativas podem ser concebidas num ambiente de cooperação voluntária dinâmico e em constante mudança.

A substituição progressiva dos estados por uma rede dinâmica de agências privadas, suportando diferentes sistemas jurídicos e fornecendo todo o tipo de segurança, prevenção de crimes e serviços de defesa, constitui o item mais importante na agenda política e científica, bem como a mudança social mais importante que se realizará no século XXI.

Conclusão: implicações revolucionárias do novo paradigma

A revolução encabeçada nos séculos XVIII e XIX pelos velhos liberais clássicos contra o ancien régimetem hoje a sua natural continuação na revolução anarco-capitalista do século XXI. Felizmente, descobrimos a razão do falhanço do liberalismo utópico bem como a necessidade de o superar pelo o liberalismo científico. Para além disso, sabemos que os velhos revolucionários eram ingénuos e estavam enganados na sua tentativa de alcançar um ideal inatingível que, ao longo do século XX, abriu a porta para as piores tiranias estatistas que a humanidade alguma vez conheceu.

A mensagem do anarco-capitalista é marcadamente revolucionária. É revolucionária no seu objectivo: o desmantelamento do estado e a sua substituição por um processo de mercado competitivo no qual participam uma rede de agências privadas, associações e organizações participam. É também revolucionária nos seus meios, particularmente nas esferas científica, económico-social e política.

  1. Revolução Científica – Por um lado, a ciência económica torna-se a teoria geral da ordem espontânea do mercado alargada a todos os domínios sociais. Por outro, incorpora a análise da descoordenação social que o estatismo produz em qualquer área que influencie (incluindo lei, justiça e ordem pública). Além disso, os diferentes métodos para desmantelar o estado, os processos de transição envolvidos, bem como as formas e os efeitos de privatizar completamente todos os serviços hoje considerados «públicos», constituem uma área essencial de investigação da nossa disciplina.
  2. Revolução Económica e Social – Não é possível sequer imaginar os espectaculares feitos, avanços e descobertas humanos que serão possíveis num ambiente empresarial completamente livre de estatismo. Mesmo hoje, apesar do contínuo assédio governamental, uma civilização previamente desconhecida começou a desenvolver-se num mundo cada vez mais globalizado. É uma civilização contra cujo grau de complexidade o poder do estatismo é insuficiente e que, uma vez que totalmente livre de estatismo, se expandirá sem limite. A força da criatividade na natureza humana é tal que medra mesmo através das mais estreitas fissuras na armadura do estado. Assim que as pessoas ganhem uma maior consciência acerca da natureza fundamentalmente perversa do estado que as restringe, e assim que percebam as tremendas oportunidades tiradas diariamente do seu alcance quando o estado bloqueia a força impulsora da sua criatividade empresarial, juntar-se-ão em grandes números num clamor social por reforma, pelo desmantelamento do estado e pelo avanço em direcção a um futuro que permanece inteiramente desconhecido, mas que inevitavelmente elevará a civilização humana a alturas hoje inimagináveis.
  3. Revolução Política – A luta política diária torna-se secundária face ao descrito nos dois pontos acima. É verdade que devemos sempre apoiar as alternativas menos intervencionistas, apoiando claramente os esforços dos liberais clássicos em limitar democraticamente o estado. No entanto, o anarco-capitalista não fica por isso; ele sabe, e deve fazer, muito mais. Ele sabe que o objectivo último é o total desmantelamento do estado, e diariamente isto incendeia toda a sua imaginação e alimenta toda a sua acção política. Pequenos avanços na direcção certa são certamente bem-vindos, mas nunca devemos cair num pragmatismo que abandone o objectivo último de pôr fim ao estado. Para o efeito de ensinar e influenciar o grande público, devemos sempre perseguir este objectivo de uma forma sistemática e transparente[10].A agenda política anarco-capitalista incluirá, por exemplo, uma redução ininterrupta do tamanho e do poder dos estados. Através de uma descentralização regional e local em todas as áreas, do nacionalismo libertário, da reintrodução de cidades-estado e da secessão[11], o objectivo será sempre bloquear a ditadura da maioria sobre a minoria e permitir cada vez mais que as pessoas «votem com os pés» e não com os boletins de voto. Em suma, o objectivo é que as pessoas sejam capazes de colaborar umas com as outras, à escala planetária e através das fronteiras, para atingir os mais variados fins e independentemente dos estados (organizações religiosas, clubes privados, redes na Internet, etc.)[12].É também bom relembrar que as revoluções políticas não têm de ser sangrentas. Isto é especialmente verdade quando resultam do necessário processo de educação e desenvolvimento social, bem como de um clamor popular e do desejo generalizado de pôr fim ao engano, à mentira e à coerção que impedem as pessoas de atingir os seus objectivos. Por exemplo, a queda do muro de Berlim e a Revolução de Veludo, que puseram o fim ao socialismo na Europa de Leste, deram-se basicamente sem derramamento de sangue. Ao longo do caminho em direcção a este importante resultado final, devemos usar todos os meios pacíficos[13] e legais[14] que o actual sistema político actual permita.

Abre-se um futuro apaixonante no qual descobriremos continuamente novas estradas que, em consonância com os princípios fundamentais, nos levarão na direcção do ideal anarco-capitalista. Mesmo que este futuro possa parecer distante, a qualquer momento poderemos testemunhar grandes passos em frente que surpreenderão mesmo os mais optimistas. Quem é que foi capaz de prever, com cinco anos de avanço, que em 1989 o muro de Berlim colapsaria e, com ele, o próprio comunismo na Europa de Leste? A história entrou num acelerado processo de mudança que, apesar de que nunca se deterá, que abrirá um capítulo totalmente novo quando a humanidade, pela primeira vez na história moderna, se libertar definitivamente do estado e o reduzir a não mais que uma sombria e trágica relíquia histórica.

Notas do autor sobre o artigo

Jesús Huerta de Soto é Professor de Economia Política, Universidad Rey Juan Carlos, Madrid. Este artigo foi publicado originalmente em espanhol com o título «Liberalismo Versus Anarcocapitalismo»,Procesos de Mercado: Revista Europea de Economía Política 4, n.º 2 (2007): 13–32, e baseia-se em duas lições distintas dadas sob o mesmo título, uma na universidade de verão da Universidad Rey Juan Carlos (Aranjuez, sexta-feira, dia 6 de Julho de 2007) e a outra na universidade de verão da Universidad Complutense (San Lorenzo de El Escorial, segunda-feira, dia 16 de Julho de 2007). Nessas lições, formalizei a minha «quebra» com o liberalismo clássico, ele próprio um mero passo na evolução natural para o anarco-capitalismo. Já em Setembro de 2000, na reunião geral da Mont Pèlerin Society em Santiago, Chile, num discurso que proferi como parte de uma apresentação conjunta com James Buchanan e Bruno Frei, tinha indiciado claramente esta quebra. Jesús Huerta de Soto, «El Desmantelamiento del Estado y la Democracia Directa», Nuevos Estudios de Economía Política, 2.ª ed. (Madrid: Unión Editorial, 2007): chap. 10, pp. 239–45.

Sobre o artigo

Tradução de Lourenço Vales a partir da versão inglesa do artigo, que integra o livro Property, Freedom, and Society: Essays in Honor of Hans-Hermann Hoppe, editado por Jörg Guido Hülsmann e Stephan Kinsella, e publicado em 2009 pelo Ludwig von Mises Institute. O artigo foi publicado pela primeira vez em castelhano, com o título «Liberalismo Versus Anarcocapitalismo», na revista Procesos de Mercado: Revista Europea de Economía Política 4, n.º 2 (2007): 13–32.

O texto original possui um apêndice com algumas considerações de Huerta de Soto sobre a experiência anarquista em Espanha e com um diagrama explicativo da evolução dos diferentes sistemas políticos. Optou-se por omitir esse apêndice nesta tradução por se considerar de menor relevância para o público português.

  1. [1] Israel M. Kirzner, Discovery and the Capitalist Process (Chicago e Londres: University of Chicago Press, 1985), p. 168. 
  2. [2] Jesús Huerta de Soto, Socialismo, Cálculo Económico, y Función Empresarial, 3.ª ed. (Madrid: Unión Editorial, 2005), pp. 151–53. 
  3. [3] Jesús Huerta de Soto, Money, Bank Credit, and Economic Cycles, Melinda A. Stroup, trans. (Auburn, Ala.: Mises Institute, 2006) (publicado originalmente em Espanhol no ano de 1998 comoDinero, Crédito Bancario, y Ciclos Económicos, 3.ª ed. (Madrid: Unión Editorial, 2006)). 
  4. [4] F.A. Hayek, Law, Legislation, and Liberty: A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy, 3 vol. (Chicago: University of Chicago Press, 1973–1979). 
  5. [5] Carlos Rodríguez Braun, A Pesar Del Gobierno: 100 Críticas al Intervencionismo con Nombres y Apellidos (Madrid: Unión Editorial, 1999). 
  6. [6] Hans-Hermann Hoppe, Democracy: The God that Failed: The Economics and Politics of Monarchy, Democracy, and Natural Order (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 2001). 
  7. [7] É possível que a mais notável excepção apareça na brilhante obra sobre Jesus da Nazaré do Papa Bento XVI. Que o estado e o poder político são a encarnação do Anticristo deve ser óbvio para qualquer pessoa com o mais ligeiro conhecimento de história que leia as reflexões do Papa sobre a tentação mais perigosa que o diabo pode colocar no nosso caminho:
    O tentador não é rude ao ponto de nos sugerir directamente que devemos adorar o diabo. Limita-se a sugerir que optemos pela decisão razoável, que escolhamos dar prioridade a um mundo planeado e minuciosamente organizado, onde Deus pode ter o seu lugar como um interesse privado mas não pode interferir nos nossos propósitos essenciais. Soloviev atribui ao Anticristo o livro intitulado The Open Way to World Peace and Welfare. Este livro torna-se como que uma nova Bíblia, cuja real mensagem é a adoração do bem-estar e do planeamento racional.Joseph Ratzinger, Jesus of Nazareth, Adrian J. Walker, trans. (Londres: Bloomsbury, 2007), p. 41. Redford faz comentários similares, apesar de muito mais categóricos. James Redford, «Jesus Is an Anarchist», Anti-state.com (2001). 
  8. [8] Anthony de Jasay, Market Socialism: A Scrutiny: This Square Circle (Occasional paper 84) (Londres: Institute of Economic Affairs, 1990), p. 35. 
  9. [9] Jesús Huerta de Soto, «The Essence of the Austrian School», palestra leccionada no Bundesministerium für Wissenschart und Forchung, 26 de Março de 2007, em Viena; publicada emProcesos de Mercado: Revista Europea de Economía Política 4, n.º 1 (primavera de 2007): 343–350, ver esp. 347–348. 
  10. [10] Jesús Huerta de Soto, «El Economista Liberal y la Política», em Manuel Fraga: Homenaje Académico, vol. 2 (Madrid: Fundación Cánovas del Castillo), pp. 763–88; reimpresso nas pp. 163–92 dos Nuevos Estudios de Economía Política. Por exemplo, um indicador da crescente importância do capitalismo libertário na actual agenda política é o artigo «Libertarians Rising», que apareceu na secção de ensaios da revista Time em 2007. Michael Kinsley, «Libertarians Rising», Time(29 de Outubro de 2007), p. 112. 
  11. [11] Jesús Huerta de Soto, «Teoría del Nacionalismo Liberal», em Estudios de Economía Política, 2.ª ed. (Madrid: Unión Editorial, 2004); idem, «El Desmantelamiento del Estado y la Democracia Directa». 
  12. [12] Bruno S. Frey, «A Utopia? Government Without Territorial Monopoly», The Independent Review6, n.º 1 (verão de 2001): 99–112. 
  13. [13] Nunca nos devemos esquecer das prescrições dos escolásticos espanhóis do Século de Ouro no que concerne às estritas condições que um acto de violência deve satisfazer para ser «justo»:
    1. todos os meios e procedimentos pacíficos possíveis devem ser primeiramente esgotados;
    2. o acto deve ser defensivo (uma resposta a actos de violência concreta) e nunca agressivo;
    3. os meios usados devem ser proporcionais (p.e., o ideal da independência não vale a vida ou a liberdade de um único ser humano);
    4. todas as tentativas para evitar a existência de vítimas inocentes devem ser feitas;
    5. deve existir uma hipótese razoável de sucesso (senão, tal seria suicídio injustificado).Estes são princípios sábios, aos quais eu acrescentaria que a participação e financiamento devem ser inteiramente voluntários. Qualquer acto de violência que vá contra um destes princípios perde automaticamente a legitimidade e torna-se o pior inimigo do objectivo declarado. Finalmente, toda a teoria do tiranicídio do Padre Juan de Mariana é também relevante aqui. Juan de Mariana, De Rege et Regis Institutione (Toledo: Pedro Rodríguez, 1599). 
  14. [14] Como Rothbard sugeriu, não é aconselhável violar as actuais leis (basicamente, ordens administrativas), pois na vasta maioria dos casos, os custos superam os benefícios. 

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